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Alguns apontamentos sobre a leitura de “Um Longo Acordar”

Alguns apontamentos sobre a leitura de “Um Longo Acordar”

Há dias, estive em Braga com o escritor galego Artur Alonso Novelhe a apresentar o seu mais recente romance, intitulado Um Longo Acordar. Foi uma conversa tão agradável quanto reveladora de algumas das circunstâncias e inquietações que serviram de palco e matéria para a escrita desta obra. Para quem não pôde estar presente, sobretudo os que ainda não tenham tido a oportunidade de ler o livro, aqui partilho algumas das minhas impressões iniciais sobre esta obra.

O título “Um Longo Acordar” é, desde logo, ele próprio um prenúncio daquilo que o leitor encontrará – uma viagem longa, carregada de reflexão e que, eventualmente, o conduzirá a uma espécie de epifania, durante ou após a leitura da obra. Não se trata, pois, de uma alusão a um sono prolongado como no célebre conto infantil da bela princesa adormecida, mas sim a um processo de crescimento pessoal e social que requer, necessariamente, o suporte basilar do próprio tempo.

A imagem da capa, também ela bastante enigmática, um quadro de Francisco Fernández, parece remeter-nos, num primeiro olhar, para o universo das tribos indígenas e a sua relação com a natureza. Num segundo olhar, contudo, de forma simbólica, parece ilustrar o modo como nós, humanos, temos na nossa essência algumas das características que usualmente atribuímos a outros animais, e diferentes níveis de consciência.

Capa do livro Um Longo Acordar

Mas os enigmas deste livro não se ficam pela capa. A abrir o texto, deparamo-nos com um poema que parece preparar-nos para o longo acordar que nos espera. Nele, o sujeito poético declara ter “fome de pão”, mas sublinha que anseia por algo mais, como um profeta ou sacerdote:

Tenho fome de pão, sim!
mas também não terei fome de compartilhar
o pão sagrado que é alimento?
(se reparas existe no estômago interior
um oco bem mais aberto)

E o poema prossegue, até terminar com uma voz enigmática:

– “Silêncio, fala apenas com o silêncio”

Como se para haver uma possibilidade de diálogo fosse necessário parar, silenciar tempestades e ódios antigos, e escutar a voz mais profunda da nossa essência.

A partir deste ponto inicial, temos então um romance ou novela, um relato relativamente curto (pouco mais de uma centena de páginas), mas extremamente denso em referências implícitas e em conteúdo filosófico.

Surge assim a personagem principal, Abel, que em cada capítulo conversa com interlocutores diversos, sobre a sua vida passada, sobre os seus afetos e os seus valores. Coincidência ou não, Abel recebe o nome de uma famosa personagem bíblica, o filho de Adão e Eva, que acabaria morto às mãos do próprio irmão Caim, supostamente por ter logrado um maior apreço por parte de Deus. Que é como quem diz, um homem que se dedica a uma causa de corpo e alma, e que acaba perdendo a própria vida por escolher viver de acordo com os seus princípios. Mas o Abel de Um Longo Acordar não é o filho do casal do Éden. É antes um homem do nosso tempo, que a cada passo questiona o status quo e nos convida a refletir sobre os avanços e recuos da civilização.

Um Longo Acordar é um livro constantemente entremeado por citações e alusões que remetem para textos e autores de áreas tão diversificadas como a Física Quântica ou o Budismo. Segue uma estrutura que faz lembrar os diálogos socráticos que encontramos em Platão, mas que surge aqui combinada com uma narrativa subjacente, vagamente reminescente da jornada espiritual do Siddhartha de Hermann Hesse (Abel, à semelhança de Siddhartha, é alguém que busca respostas e mestres ao longo da vida). Em termos formais, contudo, os diálogos dominam neste caso a maior parte da obra, que poderíamos descrever como um romance filosófico ou um tratado filosófico romanceado. O amor, as relações de poder, as fronteiras, o sistema financeiro, a sempre conflituosa relação da indústria com os ecossistemas, e tantos outros temas, ora da atualidade, ora universais e intemporais, são abordados em diálogos que parecem sugerir ao leitor o caminho para uma reflexão mais aprofundada. Como sementes que procuram terra fértil e uma mão hábil que as cultive.

Finalmente, no contexto atual, uma apresentação deste livro ao público lusófono em geral não poderia deixar de fazer referência à língua e ortografia escolhidas pelo autor. Na Galiza, considerada por muitos como o berço da Língua Portuguesa, fala-se e escreve-se não só em Castelhano (ou Espanhol, se assim o preferirem), mas também na sua língua própria, habitualmente designada como Galego. Que é, na verdade, uma variante daquilo que internacionalmente reconhecemos e designamos como Português. Ao longo das últimas décadas, tem havido uma permanente discussão sobre o progressivo afastamento do Galego do âmbito da Lusofonia, mas há uma longa tradição e um movimento vivo de linguistas, escritores e cidadãos comuns que o consideram como o Português da Galiza, defendem a sua reintegração no âmbito lusófono e que, em conformidade com essa postura, escolhem adotar nos seus escritos a ortografia internacional. Artur Alonso Novelhe opta assim, conscientemente, por utilizar a ortografia a que na Galiza se designa por vezes como o “Galego Internacional” – ou seja, a do Português. E ainda bem, pois é uma opção que, sem prescindir da autenticidade e sem deturpar a sua língua nativa, lhe permite chegar mais facilmente também aos leitores portugueses, brasileiros, e não só.

Um Longo Acordar é uma edição conjunta do MIL: Movimento Internacional Lusófono e das DG Edições. O livro pode ser encontrado, na Galiza, nas Galerias Sargadelos (Ourense e Lugo), Livraria Milfolhas (Ponteareas), Livraria Andel (Vigo) e Livraria Ciranda (Santiago de Compostela). Em Portugal, também já pode ser adquirido em Braga, na Livraria Centésima Página, e em Guimarães, na Livraria NBook. Adicionalmente, pode ainda ser encomendado diretamente junto da própria editora, através do email info@movimentolusofono.org, que poderá providenciar se necessário o envio pelo correio.