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"Um novo escritor português", no jornal brasileiro “A União”


Jornal A União, 26/6/2003
por Antônio Mariano Lima

Victor Domingos é um escritor português de vinte e pouquíssimos anos e muito talento. Nasceu em Arcos de Valdevez, estuda Psicologia na Universidade do Minho e toca trombone na Banda Filarmônica da Sociedade Musical Arcuense. Quando soube dele há cinco anos pelo intercâmbio do portal Sapo.pt, aquele adolescente já me surpreendia pela desenvoltura da expressão, a forma articulada da escrita, um admirável repertório cultural. O que me fez intuir um escritor de potencial que poderia ser revelado a qualquer momento.

Ele negava. Era somente um leitor que gostava de comentar o que lia. Mas eu não me enganara.

Um ano depois (1999), com a novela Ode a um poeta naturalista, ele arrebatava o primeiro prêmio do Concurso Literário Teixeira de Queiroz. A obra permanece inédita em papel mas foi dada à luz em formato digital (…).

Em 2002, em novo concurso, “Ecos da Memória”, promovido pela Associação Autores de Braga, foi premiado com outra novela, Manual de Trigonometria Aplicada, publicada com o selo da Coleção Juno.

Misto de gênero epistolar, o opúsculo de 49 páginas, tal qual a sua incursão anterior, expõe, pelo vigor da prosa inquieta, um criador para cuja trajetória vale ficar atento. As dúvidas e constatações do protagonista, um engenheiro, alojadas no curioso título da obra, nos remetem ao dilema da natureza humana, a luta entre a razão e a sensibilidade. Para triunfo da arte, entretanto, aqui, malgrado os esforços do personagem em suas referências matemáticas, a segunda leva vantagem. O que temos é um itinerário afetivo de ocorrências e percepções de um mundo particular que a cada linha o personagem busca construir e nele reencontrar-se. Ou, mais precisamente, a descoberta do universo através da linguagem de que nos fala Sartre em seu Diário de uma guerra estranha.

No trecho a seguir (Pág. 18), Victor Domingos, a exemplo da obra anterior, lança mão de um recurso que, se não constitui novidade, pelo menos foge ao corriqueiro: o paralelo de um diálogo entre parênteses no corpo da narrativa, às vezes desvinculado do assunto em curso. O efeito da leveza é delicioso:

“Um lugar recolhido, a frieza de um rosto de expressão forçada, dois dentes podres a sorrir de forma amarelada junto a um olhar triste e enfadado… Uma vaga vontade de vomitar. (Que se passa, jovem? Mas então que raio de macho és tu?)

E no fim de nada, três notas azuis deitadas ao vento.

O regresso. (Então, como correu?) Há coisas que não se dizem. (Correu bem…) Há coisas que não se podem dizer. (Correu bem, como?…)

Súbita mudança de conversa, oportunamente motivada por um encontro casual com o diretor do colégio. (Chiu!… Olha quem vem ali.)

E o regresso a casa, de carteira leve e com aquele hálito nauseabundo da Amieira ainda bem marcado na memória.”

Que o leitor não me deixe mentir. Daí, é só aguardar por futuros e ousados projetos ficcionais desse escritor a que desejamos espaço garantido nas letras portuguesas e que se torne um nome familiar entre nós, irmãos que compartilham o mesmo idioma.


O texto acima, da autoria do poeta e escritor Antônio Mariano Lima, foi publicado originalmente no suplemento “Cultura” do jornal brasileiro “A União”, na sua edição de 26 de junho de 2003. Trata-se de uma recensão ao livro Manual de Trigonometria Aplicada, cuja reedição em formato digital ficará disponível muito brevemente. O artigo é aqui reproduzido com a devida permissão do autor, a quem agradecemos a gentileza.